No domingo passado, um gesto de Dráuzio Varella, médico bastante conhecido na Rede Globo por participar de quadros com esclarecimentos à população sobre diversas doenças, acabou viralizando nas redes sociais: em um quadro do programa Fantástico, ele abraçou uma detenta transexual que estava há oito anos encarcerada, e que sequer tinha recebido visitas de familiares neste meio-tempo.
Para alguns, o abraço de Drauzio em Suzy foi visto como uma oportunidade para sinalizar virtudes. Afinal de contas, era uma demonstração de amor e empatia para uma detenta cuja própria família a (ou seria o?) havia abandonado. E em tempos em que tais (supostas) virtudes são escassas, gestos como o do médico global seriam um grande exemplo para a sociedade. Será?
Pois bem, considerando que Suzy já estava há tanto tempo atrás das grades, é razoável imaginar que o crime que ela(e) cometeu era, digamos, bastante grave. E ontem, acabamos sabendo um pouco mais sobre a presa abraçada por Dráuzio Varella: foi condenada por estuprar e assassinar uma criança de 9 anos. E, ao se fuçar mais um pouco sobre Suzy, descobre-se, por exemplo, o relato de uma tia dela, que disse que esta também abusou de outras crianças.
É bom deixar claro que minha crítica ao abraço de Dráuzio em Suzy não tem que ver com o ato em si. Fosse deixado bem claro - e desde o começo - quem era a trans e o que ela fez, o gesto do médico global seria considerado algo corajoso e, ainda que despertasse uma saraivada de objeções, pelo menos não seria possível inferir que o público foi enganado acerca da realidade dos fatos.
Mas não foi este o caso. Deliberadamente - e para fins de construção de uma narrativa conveniente, a de que Suzy foi deixada à própria sorte por ser transexual - os fatos foram omitidos do público. E, em um momento que a mídia tradicional tenta se afirmar como fiadora da verdade em meio à onda de fake news que grassa nas redes sociais, a descoberta de mais um episódio em que esta falha miseravelmente nesse objetivo não poderia vir em pior hora.
E pelo amor de Cristo - já que querem apelar ao conceito cristão de caridade para defender uma das maiores presepadas do jornalismo brasileiro de 2020 -, não chamem isso de caridade! Para começo de conversa, a caridade cristã é contrária a qualquer publicidade deliberada, bem como qualquer sinalização de virtude (“[...] que a sua mão esquerda não saiba o que está fazendo a direita [...]”, como está em Mateus 6:3). Sem falar que ela, assim como qualquer ação humana, por mais virtuosa que seja, precisa estar fundamentada na verdade. E omitir fatos - ainda mais para construir uma narrativa artificial - é totalmente o oposto disso.
Nem é preciso falar que, para além do desserviço causado pelo expediente empregado no Fantástico à ideia de caridade, o ocorrido também ajuda a descredibilizar a pauta do preconceito e discriminação contra pessoas trans, esta sim uma pauta real e, por que não, válida.
Em suma, caridade que não se baseia na verdade pode ser qualquer coisa. Menos caridade.
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